O Novo (A)normal

De todos conceitos que surgiram para descrever as mudanças que estão acontecendo durante a pandemia, talvez o mais popular hoje seja o de que estamos vivendo o Novo Normal.

Este assunto se tornou tema central de nove em cada dez das lives que inundaram o mundo online nos últimos meses. Nelas, uma audiência ampla e desconcertada, forçada a viver em um isolamento físico sem precedentes na história moderna, busca a ajuda de especialistas para entender as transformações radicais que estão acontecendo em suas vidas pessoais e profissionais e encontrar explicações sobre como será o mundo pós-pandemia.

Essa nova realidade que emergia numa velocidade sem precedentes diante dos nossos olhos ganhou o nome de Novo Normal:um conjunto de mudanças drásticas, profundas e duradouras na nossa sociedade, causadas pelo impacto da COVID-19, que têm efeito nas formas como trabalhamos, vendemos, consumimos, viajamos, nos divertimos, interagimos uns com os outros e com o mundo ao nosso redor.

Nesse Novo Normal decretou-se a substituição do escritório tradicional pelo home-office, o desaparecimento dos cinemas e dos eventos de grandes aglomerações públicas, a reinvenção do varejo decorrente da decadência das lojas físicas e da adoção maciça do modelos de negócios online, a quase extinção dos restaurantes tradicionais e a explosão dos serviços de delivery, uma mudança sem retorno na forma como viajamos e no turismo mundial. Tudo isso e muito mais.


É um mundo novo onde a tônica será manter a distância social, usar máscaras, lavar as mãos e assumir a responsabilidade pela sua própria saúde e pela saúde daqueles que estão ao seu redor, estando sempre preparado para uma nova onda da pandemia, que vai nos levar várias casas para trás na nossa jornada em direção ao mundo pós-COVID-19. 


Tudo isso está acontecendo agora, em todo o planeta, e é a nova realidade com que temos que lidar.


Só que não.


A verdade é que o caminho que estamos seguindo é muito menos claro do que gostaríamos – ou do que aquilo que descreveram nas últimas 12 lives e webinars que você assistiu. A enorme crise global na saúde, aliada à maior crise econômica dos nossos tempos e, no caso do Brasil, associadas a uma crise política profunda, têm levado as nossas estruturas sociais a um nível de incerteza e complexidade inéditos. Neste contexto, surge uma realidade onde trabalhamos com informações incompletas e cenários em constante mudança, com novos elementos disruptivos surgindo a cada momento e desvios de curso sendo necessários numa jornada para um destino ainda difuso e ainda incerto.


Prever aonde o futuro pode nos levar tornou-se um exercício diário de análises, atualizações e ajustes.

Bem-vindo à era do Novo (A)normal 


A ascensão do Ultra-VUCA


O Novo (A)normal é um produto criado pelo mundo ultra-VUCA onde vivemos.

Para quem não conhece, VUCA é um conceito desenvolvido pelos acadêmicos americanos Warren Bennis e Burt Nanus nos anos 1980 e depois adotado pelas forças armadas americanas para descrever o mundo pós-Guerra Fria. A sigla significa “volátil, incerto, complexo e ambíguo” (em inglês, Volatile, Uncertain, Complex and Ambiguous). 


O VUCA se popularizou recentemente como a melhor forma de definir do mundo moderno, onde transformações sociais, econômicas, ambientais e políticas, associadas a avanços tecnológicos e científicos, têm acelerado o ritmo das mudanças na nossa sociedade e tornado a tarefa de entender o presente e nos planejar para o futuro cada vez mais complicada.


Até que veio um COVID-19 e tudo saiu do controle: entramos na era do ultra-VUCA.

No ultra-VUCA, as mudanças acontecem num ritmo mais rápido do que a nossa capacidade de compreender suas implicações e nos preparar para elas. As informações disponíveis são incompletas e contraditórias, precisando ser constantemente atualizadas e/ou corrigidas, às vezes mais de uma vez por dia. 


É no mundo ultra-VUCA que surge o Novo (A)normal, um estágio temporário das estruturas da nossa sociedade que conecta o Velho Normal ao que um dia poderá ser chamado de Novo Normal. 

O Novo (A)normal é heterogêneo e imprevisível, e está em constante mudança. É o momento em que as forças resistentes do passado se chocam com as pressões do presente e geram uma dinâmica caótica, onde a busca pela sobrevivência faz com que paradigmas sejam quebrados em um ritmo vertiginoso, e novas formas de colaboração, novos comportamentos, novos modelos de negócio e novas tecnologias são adotados e abandonados em uma velocidade difícil de apreender. É uma realidade muito volátil, onde tudo acontece de forma extremamente reativa, sem planejamento ou estratégia.


Nesse momento, as forças, muitas vezes opostas, que moldam a nossa sociedade se intensificam, o que faz com que ainda exista um longo caminho a percorrer, até que a nova realidade que está se desenhando assuma uma forma mais estável – e gerenciável. 


O resultado é um ambiente extraordinário, onde experimentos antes impensáveis são implementados em tempo recorde, e onde não apenas pessoas e organizações, mas também toda nossa sociedade, se movimentam para fora de seus domínios, reinventando sua razão de ser. 


É um momento no tempo onde nada é perene, tudo é mutável.


O Novo (A)normal é tempestade perfeita que pode criar as condições para uma transformação profunda e duradoura de mindsets pessoais, regionais e globais.


Mas será que vamos deixar que isso aconteça?


O Velho Normal Contra-Ataca


O risco da contaminação pelo novo coronavírus fez com que nosso comportamento e  nossos hábitos se transformassem em uma velocidade sem precedentes. Pessoas de todas as nacionalidades, culturas e classes sociais não foram apenas tiradas das suas zonas de conforto: foram arremessadas para fora delas.

Ao mesmo tempo que a pandemia causa mudanças radicais no mundo, fazendo com que a nossa realidade se torne cada vez mais irreconhecível, existe dentro de cada um de nós um enorme desejo de uma volta à normalidade. Mesmo antes do auge da crise já existia uma resistência às transformações incluídas na categoria de “Novo Normal”. 


Neste contexto, aquilo que era inicialmente um desconforto com as mudanças aceleradas se transforma em uma resistência, e depois em uma busca ativa pelo resgate do familiar. Custe o que custar.

Medidas de isolamento social e lockdown, que antes eram aceitas como essenciais para conter a contaminação pela COVID-19 e o avanço da pandemia, começam a ser questionadas e, aos poucos, parecer exageradas, desnecessárias até mesmo irrelevantes.


Para justificar o nosso comportamento, encontramos nos meios de comunicação, nas redes sociais e nas nossas próprias relações pessoais narrativas que confirmem nossas aspirações individuais e coletivas e rejeitamos aquelas que entram em conflito com as nossas expectativas. 


Trabalhos recentes de ciência comportamental, produzidos por pesquisadores respeitados como o psicólogo Daniel Kahneman, o economista comportamental Dan Ariely e a neurocientista Tali Sharot, mostram que nós somos extremamente vulneráveis a vieses cognitivos que nos fazem minimizar as possíveis consequências de informações indesejáveis e ser irracionalmente otimistas.


Quando uma nova ameaça às nossas vidas ou ao nosso status quo surge, nos colocamos em um estado de alerta; mas, à medida em que o tempo passa, essa ameaça ocupa um espaço cada vez menor na nossa consciência, até ser praticamente ignorada no dia-a-dia.


Eis um exemplo: muitos podem achar que andar de avião é perigoso, mas a chance média de uma pessoa morrer num acidente automobilístico é de 1 em 114 (0,9%), enquanto a chance de morrer num acidente aéreo é de 1 em 9.821 (0,01%), segundo estatísticas americanas. Os autores argumentam que, pelo fato de acidentes aéreos serem muito noticiados (já que são eventos excepcionais), fica para o público a ideia de que o extraordinário é comum, e vice-versa.


Mas nós pensamos nisso quando entramos nos nossos carros para ir às compras ou para uma visita na casa de nossos amigos? A familiaridade nos torna insensíveis ao risco.


Isso se aplica perfeitamente ao momento que estamos vivendo. Uma vez que o extraordinário – no caso, a chance de contaminação – se torna familiar, gradualmente as nossas necessidades sociais, emocionais e econômicas acabam tomando um espaço cada vez maior nas nossas mentes, nossa guarda vai baixando e o medo se torna indiferença e até mesmo desdém.


Pudemos observar isso nos dias que se seguiram à abertura gradual da economia e redução do isolamento social em países como a França e os Estados Unidos. O que vimos foram cafés lotados e praias cheias, como se a quarentena e o lockdown fossem apenas lembranças difusas de um passado distante.


Existe uma grande chance, enquanto não surgir uma vacina disponível ou tratamentos seguros para curar a infecção causada pela COVID-19,  de que a percepção do risco gradualmente ocupe um espaço cada vez menor nas nossas mentes e no nosso dia-a-dia, e ele se junte a ameaças sempre presentes, como  HIV, H1N1, dengue, SARS, tuberculose, hepatite-B e outras; ameaças que já provocaram ações e reações intensas de pessoas e governos, e que hoje quase não são registradas pela nossa consciência, substituídas pelo conforto que a percepção seletiva e a ilusão de normalidade nos oferecem.


A grande verdade é que a duração da crise gerada pela pandemia é que vai determinar se as mudanças experimentadas durante o período caótico Novo (A)normal serão incorporadas à nossa vida cotidiana e passarão a fazer parte do que poderemos, aí sim, chamar de o Novo Normal. Quanto mais longo for o período em que seremos forçados a limitar nossas interações sociais e a adotar novos hábitos de consumo e formas de trabalho e colaboração, maiores serão as possibilidades de que as mudanças se tornem permanentes.


Cinemas, festivais de música, o varejo físico, bares, restaurantes, companhias aéreas, empresas tradicionais que resistem aos modelos de colaboração baseados no trabalho remoto e tantas outras atividades que foram vítimas da disrupção causada pelo novo coronavírus, vão lutar com todas suas forças para recuperar o espaço perdido à medida em que as economias se recuperarem. O mundo analógico pré-COVID-19 vai contra-atacar.


Que mundo vai surgir dessa embate entre as forças transformadoras do Novo (A)Normal e a resistência do Velho Normal?


Os 50 tons do futuro

Ao imaginar cenários que descrevam futuros possíveis, temos que resistir à nossa inclinação natural de descrevê-los como algo homogêneo.


Em um mundo onde existem contrastes sociais, políticos, econômicos e tecnológicos extremos – que não vão deixar de existir tão cedo –, diferentes futuros se manifestam simultaneamente, muitas vezes num mesmo espaço físico e cronológico.


O futuro, para alguns, é um lugar onde vamos encontrar veículos autônomos, entregas feitas por drones, lojas totalmente automatizadas, reuniões de trabalho em realidade virtual, máquinas que pensam, fazendo diagnósticos médicos ou escrevendo notícias para grandes jornais, robôs microscópicos realizando tratamentos médicos customizados nos corpos dos pacientes, turistas viajando em foguetes reutilizáveis, em uma jornada que inclui uma órbita ao redor da Lua.

Para outros, futuro é ter saneamento básico.


Num planeta onde existem mais pessoas que possuem telefones celulares do que pessoas que têm acesso a água potável, é fundamental desenvolver uma visão que concilie não apenas os contrastes extremos e as contradições presentes na sociedade moderna, mas que também leve em consideração todas as nuances que existem no espaço entre os extremos. Uma visão que vá muito além do binário.

Esse é mundo dos 50 Tons de Futuro.


Se, no mundo pré-pandemia, um futuro diverso, complexo e cheio de ambiguidades era visto como inevitável, a realidade que emerge do cenário ultra-VUCA em que vivemos produz ainda mais elementos disruptivos, muitas vezes antagonistas e contraditórios, onde o novo disputa espaço com o velho normal. O resultado é uma realidade emergente híbrida. Um Frankenstein, onde partes que não combinam são forçadas a se tornar uma unidade. É uma coexistência desconfortável; um trabalho em progresso.


Pessoas, organizações e governos têm encontrado soluções diferentes para os desafios que têm enfrentado, e seus resultados são influenciados pelo seu mindset, pelo estágio de maturidade digital em que se encontram, pelos recursos disponíveis, por suas necessidades estratégicas, pela pressão pela sobrevivência e pela busca pela prosperidade.


O mundo que emergirá deste período de crise vai ser tudo menos homogêneo, porque, se as perguntas que precisamos responder para enfrentar nossos desafios são as mesmas do passado, as respostas vão assumir múltiplas formas – ou tons.


Que tipo de futuro o Novo (A)normal vai produzir?


Nas palavras de Lenin, “Existem décadas em que nada acontece; e há semanas em que décadas acontecem”.


Essa citação poderia ser utilizada para o Novo (A)normal. Durante esse curto período, transformações que levariam vários anos – e que alguns julgavam pouco prováveis – aconteceram em apenas alguns dias. As operações de inúmeras empresas migraram totalmente para colaboração remota. Escolas e universidades por todo colocaram no ar plataformas de ensino à distância. O e-commerce deixou de ser uma promessa e virou a tábua de salvação do varejo. E estes são apenas alguns exemplos de processos de reinvenção e transformação que aconteceram em um piscar de olhos.


O Novo (A)normal é um período de transição que estamos vivendo e vai levar a uma nova era de relativa estabilidade – mas ainda há um longo caminho pela frente. 


Apesar de todo o caos e sofrimento que eventos como esse produzem, eles também criam oportunidades únicas e forçam pessoas e organizações a refletir sobre as mudanças que estão acontecendo e sobre a maneira como elas se relacionam com o novo mundo que está se formando ao nosso redor, e a decidir quais serão as ações que serão tomadas para sobreviver e prosperar nessa realidade emergente. 


Existem questões que precisam ser respondidas à medida que o Novo (A)normal dá lugar a uma nova realidade:


Qual será o impacto da adoção e normatização do trabalho remoto em cada organização, e como ele irá impactar a vida das pessoas e a própria forma como a sociedade se organiza?


Qual o impacto duradouro que este período de ensino à distância vai ter na educação?


Como as atividades econômicas que dependem de interações sociais físicas intensas, como bares, restaurantes e cinemas irão lidar com as mudanças de comportamento do seu público? E quais serão as consequências para convenções, shows de música e eventos esportivos num mundo em constante risco de uma segunda onda da pandemia? 


Como o varejo irá se reinventar para continuar relevante? Será que o comércio online vai continuar sua ascensão e se tornar a força mais relevante no período pós-pandemia? 


Será que a velocidade de adoção da indústria 4.0, com um aumento do nível de automação e de controle remotos de processos, vai se acelerar?


As viagens de negócios continuarão existindo no mundo das videoconferências? E como as companhias aéreas vão lidar com o novo mundo do distanciamento social? As multidões voltarão aos seus destinos turísticos favoritos? Existe esperança para os navios de cruzeiro? 


Como será a nossa relação com o consumo? Nos tornaremos consumidores mais conscientes? Será que essa nova consciência nos levará a fazer escolhas que nos levem a um futuro mais sustentável? E como as marcas irão lidar com esses novos aspectos da sua relação com os consumidores?


O alcance universal da crise causada pela COVID-19 abriu nossos olhos para o enorme abismo que existe entre os extremos da pirâmide social na sociedade moderna. Será que conseguiremos reduzir as desigualdades e construir uma sociedade mais justa?


E que mundo será criado neste processo? Um lugar com maior colaboração entre as nações em busca de objetivos comuns, ou um planeta fragmentado por países preocupados em cuidar dos seus próprios problemas? E como indivíduos, ficaremos mais próximos ou mais isolados uns dos outros?


A verdade é que a realidade que vai emergir deste período único de caos e incerteza que estamos vivendo ainda está sendo construída, e temos a oportunidade – e o dever – de deixar de ser meros observadores dos processos históricos que estão transformando o mundo ao nosso redor e de nos tornarmos protagonistas, agentes da criação de futuros desejáveis.


Parafraseando o grande cirurgião e pensador André Brandalise, momentos de grande mudança criam janelas de oportunidade.


O número de janelas criadas pelo Novo (A)normal é imenso. O que vamos fazer com elas é que vai fazer a diferença.

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